quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Um Grande Silêncio

Depois de procurar a campainha sem sucesso, ela abriu o portão. Surpreendentemente não havia nenhum cão.

Às margens da pequena estrada de pedra que levava até a casa, as hortênsias pareciam não ter sido podadas desde que ela tinha ido embora com a mãe. As flores vicejavam, no entanto, ora em azul aquarelado ora em quase branco.

A porta principal estava aberta. Ela deixou a mala de náilon na varanda e entrou. No sofá da sala uma mulher mais ou menos da sua idade dormia, uma toalha cobria parte do corpo nu. Os cabelos lisos, negros, ainda estavam molhados. Os seios eram menores do que os seus, talvez não tivesse vinte anos. Entre as pernas, a penugem escura não escondia a parte superior dos lábios.

Enquanto caminhava para o fundo da sala, ela apertou o próprio sexo, com ambas as mãos, sobre a calça. A enorme porta de correr aberta deixava ver o pequeno vale, como aprendera a chamar a encosta suave do morro que vinha terminar no jardim interno. O verde das árvores começava a ganhar um tom mais claro, que tornava a mata mais espessa mas também mais íntima.

Da soleira pôde ver o pai deitado na grama, sem camisa, à sombra de um caquizeiro, os dois meninos pequenos aninhados um em seu peito, o outro entre as pernas. As crianças com certeza dormiam, ele talvez cochilasse, ou apenas ouvisse o canto de um pintassilgo.

Um estrondo repentino, como o de um pneu de caminhão furado, fez com que ela recuasse dois passos. O homem apenas se moveu um pouco, sem abrir os olhos. Ela desviou o olhar para a mesa da sala.

A mesma miscelânea que estava acostumada a ver durante a infância: revistas, recortes de jornal, livros, cartas, cartões, um ou outro brinquedo, e a velha fruteira de vime, repleta de fruits exotiques, como sua mãe dizia, assumindo um ar afetado, que na realidade ela não possuía. Além de um pequeno álbum de fotografias, provavelmente tiradas em seqüência. As crianças usavam todo tipo de chapéus, bonés, boinas, com expressões que iam do cômico ao dramático.

À esquerda, a porta do escritório entreaberta, via-se o computador ligado, contra a janela. Ela entrou. Na tela um poema sem título, provavelmente inacabado. De pé, sem medo de ser surpreendida, ela leu.


nesse silêncio noturno
entrecortado por motores
e grilos – ouço o silêncio
que meus mortos fazem

não vai reverência nenhuma
nessa dupla audição
vão meu oco e carvão

o que nos une
não é a interdita frase
o tempo lesionado

mas carinhos em casulos



Levantou os olhos, por um momento viu a si mesma correndo na chuva, de um lado para o outro, o vestidinho colado ao corpo, enquanto seus pais a chamavam para dentro, rindo e gesticulando. A mesma paisagem vista da janela, a mesma estante pequena, a mesma organização relaxada. Os livros, com certeza, não seriam exatamente os mesmos.

Sentou-se, e como se o computador fosse seu abriu uma janela de pastas, escolhendo a que tinha como título Diário. Depois selecionou o mês de julho, e mais uma vez leu, como leria uma carta em seu próprio quarto.

10/07
Não lembro de ter tateado antes tão minuciosamente as paredes do silêncio, de ter respirado tão conscientemente e só.

12/07
Há uma pequena possibilidade – minúscula – que haja salvação, mesmo para nós, que no negro da noite, sem asas, voamos. Uma possibilidade ínfima, capaz de reverberar essa alegria que me sustenta – para além de mim.

26/07
Todos os dias pergunto, temente ao meu destino de homem: o que fazer de mim? Nenhum deus responde. Nos melhores momentos, há um motor que nos move, um motor divino.

28/07
Nenhuma palavra, nenhum significado, sequer uma vírgula que não seja a expressão do meu sentimento mais vital me interessa. Creio em mim como Santo Agostinho creu em deus, cheio de dúvidas, mas capaz de apaziguá-las.

30/07
Introduzir uma cigarra em cada ouvido. Ouvir seu canto serrilhado. E nos intervalos de silêncio cristalino, emudecer cada célula do corpo.

Depois de uma longa pausa, o rosto apoiado na palma da mão esquerda, ela fechou o diário e voltou ao poema sobre o silêncio. Seus olhos refizeram o trajeto do poema, verso a verso, até o final. Depois de nova pausa, ela acrescentou um último verso ao original: cápsulas de dor no ar parado.

Num movimento brusco, voltou para a sala. O relógio com mostruário de pedra, presente de um casal de argentinos, marcava três e meia da tarde. Com um pouco de sorte ainda conseguiria pegar o ônibus das quatro.

Atravessou a sala em direção à porta da frente, os cabelos da mulher agora estavam secos, apanhou a mala na varanda e fez o caminho de volta pela estradinha das hortênsias. Chegou à estação às quatro e cinco, mas o ônibus estava atrasado. Ainda teve que esperar quinze minutos antes de partir.

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