terça-feira, 13 de julho de 2010

Por puro Prazer

Antes de visitá-lo eu sempre ligava. Algumas vezes ele me esperava sentado no sofá da sala, de costas para o vitrô, a cortina fechada. Sobre a mesa oval a mesma babel de sempre: canetas, projetos, cotonetes sujos de nanquim, fotos, livros, e, naturalmente, desenhos, muitos desenhos, alguns apenas esboçados, outros concluídos.
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Mas naquela tarde ele veio abrir a porta com o formão na mão. Depois de trocarmos algumas palavras ele voltou ao trabalho, enquanto eu percorria um a um os cômodos do apartamento-ateliê. No primeiro quarto, à direita, no chão, encostados à parede, mais de uma dúzia de pequenas peças de madeira entalhadas por ele há muitos anos.
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- Arrematei esses entalhes numa galeria da cidade. Faz tanto tempo que nem mais lembrava deles. Custou uma bagatela.
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Na parede contrária à porta, de pé, quatro ou cinco portas de guarda-roupa, lado a lado, estreitas e compridas - todas entalhadas. Numa delas um São Francisco em tamanho natural. Não lembro se as outras continham variações da mesma figura ou se o tema era outro. Eram as portas do guarda-roupa que ele mantinha no Flamengo, no Rio de Janeiro. Quando decidiu morar definitivamente em Curitiba, e o apartamento foi vendido, ele retirou as portas, despachando-as para cá.
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- O guarda-roupa evidentemente não me interessava, então eu arranquei as portas, não ia deixar lá. O novo proprietário na certa ia preferir um armário embutido, mais moderno, e botar isso tudo fora.
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Agora, desprovidas de sua função habitual, elas descansavam num dos cômodos do apartamento-ateliê da rua da Paz. Às vezes me pergunto onde andarão essas portas, elas que revelam tão explicitamente como o trabalho desse artista e seu dia-a-dia eram inseparáveis. Gostaria de vê-las mais uma vez, expostas ao público, devidamente catalogadas. Mais de uma vez ele expressou o desejo de que esse trabalho de toda uma vida não se perdesse, disperso sabe-se lá em que cantos.
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No cômodo do fim do corredor, prateleiras cheias de livros. Sobre uma pequena mesa, livros. Em pilhas enormes, espalhadas pelo chão, livros e mais livros. Muitos deles contendo folhas com desenhos inéditos.
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- Fiz muito trabalho por encomenda, mas por conta própria não tenho dúvida que ilustrei muito mais.
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E, enquanto olhava para os livros empilhados em toda parte, como quem ri de uma simples travessura:
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- Os autores nem ficavam sabendo. Naturalmente muitos já morreram, não podiam saber mesmo. Ilustrei pelo puro prazer de ilustrar.
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O que parecia bagunça ou desordem era resultado de uma capacidade inesgotável de trabalho. Incansável como a água que brota da fonte, ele não parava nunca, porque nunca estava satisfeito, mas também porque trabalhar era a um só tempo fonte particular de subsistência e prazer.
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Não acredito que ele fosse o tipo de artista para quem o trabalho acaba sendo a única coisa que conta, com o passar do tempo, a única coisa que sobra. A generosidade era um traço do seu caráter, generosidade que é evidente na amplidão temática de sua obra, mas também na relação com o outro, especialmente com os amigos. Ele era generoso mesmo na hora de fazer o preço de seu trabalho.
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De volta à sala da frente, ouço o barulho do formão cortando a madeira. Atravesso a pequena cozinha e saio por uma porta estreita. Entre a parede à direita e o muro à esquerda, neste longo corredor que antes era uma área externa, agora coberta de eternit transparente, ele trabalha, sem camisa. O “cômodo” não tem mais do que um metro de largura, e as pranchas de madeira são mais altas do que ele.
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Mesmo assim ele não reclama, é a favor que ele trabalha, de pé, sem camisa, o formão afiado na mão, não contra, a favor da madeira, a favor do que seus olhos vêem e ainda não foi entalhado, a favor de uma força que se expande, positiva, para fora de seu corpo.
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Não digo nada. Observo aquele homem trepado numa banqueta, absorvido completamente por seu trabalho.
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Quando sonho com um grande atelier, não é porque acredite que a amplidão do espaço seja uma condição indispensável para o trabalho, mas porque gostaria de receber com largueza alguns amigos. Enquanto Poty caminhasse entre meus painéis de cimento, quadros e desenhos, e todos esses objetos heteróclitos e afetivos que acabam indo para o ateliê, eu trabalharia em silêncio - como resposta ao imenso prazer de sua visita.
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2 comentários:

Zaclis Veiga disse...

tão lindo o texto.
e esssas portas abertas só podem ser oferecidas por quem é gentileza em gente, gente de verdade ou da "melhor espécie". :)
beijo
ps: a série de fotos de sombras está deslumbrante.

carlos dala stella disse...

O Poty, ao contrário do que diziam, era um doce. Carybé dizia assim. Eu confirmo.

Minhas sombras, obrigado pelo que você diz delas. Há um mundo aí, e eu estou embrenhado nele. Em silêncio, como tuas janelas.

beijo